O que faz o réprobo no Inferno
Do livro "Meditações de Santo Afonso de Ligório para cada dia do ano"... Peccator videbit et irascetur, dentibus suis freme...
Peccator videbit et irascetur, dentibus suis fremet et tabescet; desiderium peccatorum peribit – “Vê-lo-á o pecador e se indignará; rangerá os dentes e se consumirá; o desejo dos pecadores perecerá” (Sl 111, 10)
Sumário. O réprobo no inferno, vendo-se oprimido pelos seus tormentos inefáveis e desesperando de jamais remediar os seus males, será devorado por um ódio contínuo de Deus e amaldiçoará todos os benefícios que dele recebeu. Assim como amaldiçoa a Deus, amaldiçoará também todos os Anjos e Santos, e especialmente à divina Mãe, cuja intercessão não quis aproveitar. Ah, meu Jesus! Seja cortada antes a minha língua; protesto que nunca Vos quero amaldiçoar, mas sim louvar-Vos para sempre no paraíso.
I. A alma, criada para amar o seu Criador, não pode deixar de sentir um impulso natural ao amor de seu último fim. Na vida presente, as trevas do pecado e os afetos terrenos podem entorpecer a inclinação da alma para se unir a Deus, e por isso não se aflige muito com a separação. Mas, quando sai do corpo e se vê livre dos sentidos, então vê claramente que só Deus a pode contentar. Pelo que procura ir logo unir-se a seu supremo Bem; mas achando-se em estado de pecado, vê que é repelida por Deus, como sua inimiga. Ainda que repelida, não deixará de se sentir sempre atraída à união com Deus, e o seu inferno consistirá em ver que sempre é atraída para Deus e sempre repelida por Ele.
Se a desgraçada, já que perdeu seu Deus e não O pode contemplar, pudesse ao menos consolar-se amando-O! Mas não, pelo abandono da graça, a sua vontade está pervertida. Por um lado, pois, ver-se-á sempre atraída a amar seu Deus; por outro, ver-se-á obrigada a odiá-Lo. Portanto, ao mesmo tempo que reconhece ser Deus digno de amor e louvor infinitos, odeia-O e amaldiçoa-O. Se ainda naquela prisão de tormentos, pudesse resignar-se à vontade de Deus e bendizer a mão que com justiça a castiga, como fazem as almas do purgatório! Não pode, porém, resignar-se, pois que para isto deveria ser auxiliada pela graça; mas esta (como já ficou dito) abandonou-a; pelo que a sua vontade é inteiramente contraria à vontade divina.
Tudo isso faz com que a infeliz vire todo o seu ódio contra si própria, e assim viverá sempre dilacerada por afetos opostos. Quisera sempre viver para odiar a Deus, objeto de seu ódio mais profundo, e sempre quisera morrer para não sentir a pena de O ter perdido. Vê, porém, que não mais pode morrer, e assim viverá numa incessante agonia. Roguemos a Deus, pelos merecimentos de Jesus Cristo, que nos livre do inferno, particularmente deve rogar assim quem em sua vida perdeu Deus pelo pecado mortal.
II. Contempla qual será a eterna ocupação do réprobo no inferno. Continuamente odiará e amaldiçoará a Deus, e, amaldiçoando a Deus, amaldiçoará também os benefícios que d’Ele recebeu: a criação, a redenção, os sacramentos, em particular, o batismo e a penitência. Sobretudo amaldiçoará o Santíssimo Sacramento do altar, que ele profanou tantas vezes e recebeu talvez sacrilegamente. O desgraçado odiará todos os Anjos e Santos, especialmente o Anjo da guarda e os seus santos Padroeiros, e mais que todos, a divina Mãe, odiará as três Pessoas divinas e, em particular, o Filho de Deus, morto para o salvar, amaldiçoando-Lhe as chagas, o sangue, os sofrimentos e a morte: O pecador verá e se indignará; rangerá os dentes, e se consumirá; o desejo dos pecadores perecerá.
Ah, meu doce Redentor Jesus! Ah, minha amadíssima Corredentora, Maria! Se jamais meu coração se sentiu enternecido e compungido à vista de suas culpas, eis que agora Vô-lo demonstram as lágrimas que derramo aos vossos pés. Misericórdia! † Meu Jesus, misericórdia! Quem me dera nunca Vos ter ofendido! No futuro, quero antes perder mil vezes a vida do que tornar a ofender-Vos. Não é o temor do inferno que me faz falar assim, mas o temor de ter que blasfemar contra Vós nesse abismo.
Ó Meu Deus, se por desgraça me condenar, terei de Vos amaldiçoar eternamente? Os meus lábios que agora Vos bendizem e exortam os outros a vosso louvor, estes lábios terão de sempre Vos amaldiçoar? Ó Senhor, não o consintais! Antes se me seque a garganta, antes se me corte a língua, seja eu antes reduzido a cinza pelo raio de vossa ira; mas protesto que nunca Vos quero amaldiçoar. Desejo ao contrário, ir ao céu para Vos louvar e bendizer, juntamente com Maria Santíssima, com os Anjos e os Santos, por toda a eternidade. Mas deveis ajudar-me com a vossa graça. Ó meu Jesus, fazei-o pelos merecimentos de vossa Paixão e pelas dores de vossa querida Mãe.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo III: Desde a Décima Segunda Semana depois de Pentecostes até o fim do ano eclesiástico. Friburgo: Herder & Cia, 1922, p. 269-272)
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