O famoso método do Filotéia
Um dos métodos de meditação mais famoso extraído do clássico Filotéia
Nota do Site
O texto abaixo foi extraído do livro de São Francisco de Sales chamado Filotéia, ou, Introdução da Vida Devota. Neste site, tomamos a liberdade de mudar a formatação (tipografia, quebra-de-linha) bem como adicionar cabeçalhos para facilitar a navegação. O texto em si, é como está no original.
O Método
Poderá ser, Filotéia, que não saibas como se faz a oração mental; pois, infelizmente, poucos o sabem nos nossos tempos. Por isso torna-se necessário que resuma aqui em algumas regras um método proveitoso, deixando para os bons livros dedicados a esta matéria e principalmente para a prática a tua instrução mais completa.
Primeira Parte: A Preparação
A primeira regra tem em vista a preparação, que consiste nestes três pontos:
- pôr-se na presença de Deus,
- pedir-lhe o auxílio de suas luzes e inspirações,
- propor-se o mistério que se quer meditar.
Por-se na presença de Deus
Quanto ao primeiro ponto, ofereço-te quatro meios principais, que poderão ajudar teu nascente ardor.
1º meio: Observe a imensidão de Deus
O primeiro consiste em atender vivamente a imensidade de Deus, que perfeita e essencialmente está presente em todas as coisas e lugares, de maneira que, como os passarinhos, para qualquer região que voem, estão sempre envoltos no ar, assim também nós, em toda parte a que nos dirigimos ou em que estamos, sempre encontramos a Deus presente em nós mesmos e em todas as coisas. Esta verdade é conhecida de todos, mas bem poucos lhe consagram a devida atenção. Os cegos que sabem achar-se na presença de um príncipe, embora não o vejam, conservam-se numa posição respeitosa; mas; porque não o veem, facilmente esquecem a sua presença e, uma vez esquecida, ainda com maior facilidade perdem o respeito que lhe é devido. Ah! Filotéia, não podemos ver a Deus, que está presente em nós; e embora a fé e a razão nos digam que Ele está presente, bem depressa nos esquecemos disso e então agimos como se Ele estivesse longe de nós: pois, conquanto saibamos que Ele está presente em todas as coisas, a falta de atenção produz em nós os mesmos efeitos que se O ignorássemos de todo.
Eis ai a razão por que no começo de nossas orações devemos refletir intensamente sobre a presença de Deus. Profundamente compenetrado desta verdade estava David, quando dizia: Se subir ao céu, tu ali te achas; se descer ao inferno, presente nele estás.
Igualmente, sirvamo-nos das palavras de Jacob, que, depois de ter visto a misteriosa escada a que já me referi, exclamou: Quão terrível é este lugar; em verdade Deus está aqui e eu não o sabia. Queria dizer que não tinha refletido bastante, porque não podia ignorar que Deus estivesse presente em toda parte. Eia, pois, Filotéia! Ao te preparares para a oração, dize de todo o coração a ti mesma: Oh! Minha alma, Deus está verdadeiramente aqui presente.
2º meio: Deus no âmago de tua alma
O segundo meio de te pores na presença de Deus é pensar que Deus não somente está no lugar onde te achas, mas também que Ele está presente em ti mesma, no âmago de tua alma: que Ele a vivifica, anima e sustenta por Sua divina presença; pois como a alma, estando presente em todo o corpo, reside contudo dum modo especial no coração, assim Deus, estando presente em todas as coisas, O está muito mais em nossa alma, podendo-se até dizer, em certo sentido, que Deus mesmo é a alma. Por isso David chamava a Deus o Deus do seu coração. E São Paulo, neste mesmo sentido, nos diz que em Deus vivemos, nos movemos e somos. E deste modo também este pensamento incitará no teu coração um respeito profundo por Deus, que está em ti tão intimamente presente.
3º meio: O Filho de Deus, no céu, me vê
O terceiro meio, que te poderá ajudar, é considerar que o Filho de Deus, como homem, no céu olha para todas as pessoas do mundo, mas mui particularmente para os cristãos, que são seus filhos e ainda mais para os que estão atualmente em oração, notando se rezam bem ou mal. Nem é isso uma pura imaginação, mas um fato muitíssimo real; pois, conquanto não O possamos ver, como Santo Estevão em seu martírio, Nosso Senhor tem, entretanto, os Seus olhos em nós,como os tinha nele, e podemos dizer-Lhe alguma coisa semelhante ao que a Esposa dos Cantares disse a seu Esposo: Ele está lá, ei-lo, é ele mesmo; ele está escondido e não o posso ver, mas ele me vê, ele me está olhando.
4º meio: Representar Jesus Cristo nesse mesmo lugar onde estamos
O quarto meio consiste em nos representarmos Jesus Cristo neste mesmo lugar onde estamos, mais ou menos como costumamos representar-nos os nossos amigos, e dizer: estou imaginando vê-Lo fazendo isso ou aquilo; parece-me vê-Lo, ouvi-Lo. Estando, porém, na igreja, ante o altar do Santíssimo Sacramento, esta presença de Jesus Cristo, Filotéia, não será meramente imaginária, mas muitíssimo real; as espécies ou aparências do pão são como um véu que O esconde a nossos olhos; Ele nos vê e considera realmente, embora a nós O não vejamos em Sua própria forma. Dum destes quatro meios, pois, te poderás servir para te pores na presença de Deus e não dos quatro duma vez, e isso mesmo deves fazer brevemente e com simplicidade.
A invocação
A invocação se faz do modo seguinte: tua alma, sentindo a Deus presente, deve compenetrar-se de um profundo respeito e reputar-se absolutamente indigna de Sua presença; todavia, sabendo que Ele te vê, deves pedir-Lhe a graça de O glorificar nesta meditação. Se quiseres, poderás servir-te de algumas palavras, breves mas ardentes, como estas, que são do profeta-rei: Nunca me arremesses de tua presença, ó meu Deus, e não tires de mim o teu Espírito Santo. Esclarece tua face sobre a terra. Dá-me entendimento e observarei a tua lei e a guardarei de todo o meu coração.
Muito útil é invocares também o teu anjo da guarda e os santos que participaram do mistério que meditas; como, por exemplo, na meditação sobre a morte de Nosso Senhor, a Santíssima Virgem, São João, Santa Madalena e os outros santos e santas e o Bom Ladrão, implorando-lhes que te emprestem os sentimentos que tinham ou, então, na meditação sobre a tua própria morte, a teu anjo da guarda, que estará lá presente. O mesmo deve dizer-se de todos os outros mistérios ou verdades que meditas.
Propor-se um mistério
Existe ainda um terceiro prelúdio da oração mental, o qual, no entanto, não é comum a toda espécie de meditações e se chama geralmente “composição” ou representação do lugar. Consiste numa certa atividade da fantasia, pela qual nos representamos o mistério ou fato que queremos meditar, como se os acontecimentos se estivessem sucedendo realmente ante os nossos olhos. Por exemplo, se queres meditar sobre a morte de Jesus crucificado no Calvário, farás uma ideia de todas as circunstâncias, como os evangelistas no-las descrevem, quanto aos lugares, pessoas, ações e palavras; o mesmo te proporei acerca dos outros objetos que os sentidos percebem, como a morte e o inferno, como já vimos; tratando-se, porém, de objetos inteiramente espirituais, como a grandeza de Deus, a excelência das virtudes, o fim da nossa criação, essa prática não é tão conveniente. É verdade que mesmo aqui se poderia usar de alguma analogia ou comparação, como vemos nas belas parábolas do Filho de Deus; mas isso tem sua dificuldade e eu quisera que te ocupasses com exercícios simples e não cansasses o teu espírito procurando semelhantes pensamentos. A utilidade deste exercício de imaginação consiste em ater a nossa fantasia ao objeto que meditamos, receando que, tão irrequieta como é, nos escape para ir ocupar-se doutros objetos; estava quase a dizer-te que deves proceder com ela, como com um passarinho que se fecha na gaiola ou com um falcão que se acorrenta ao poleiro; para que fique aí.
Dirão alguns que na representação dos mistérios é melhor usar simplesmente de pensamentos da fé e dos olhos do espírito ou, então, considerá-los como se sucedessem em nossa mente: mas tudo isso é por demais sutil para o começo, e, considerando tudo aquilo que pertence a uma perfeição mais adiantada, aconselho-te, Filotéia, a conservar-te humildemente no sopé da montanha, até que Deus se digne de elevar-te mais alto.
Segunda Parte: As considerações
A esta atividade da fantasia deve seguir-se a do entendimento, que se chama meditação e que consiste em aplicá-lo as considerações capazes de elevar a nossa vontade a Deus e de afeiçoá-la a coisas santas e divinas. Esta é a grande diferença entre a meditação e o estudo, porque o fim do estudo é a ciência, e o da meditação é o amor a Deus e a prática das virtudes. Assim, tendo prendido a tua fantasia ao objeto da meditação, procura aplicar o entendimento as considerações que lhe são como que a substância e a exposição; e, se achares gosto, luzes e utilidade numa das considerações, demora-te nela, imitando as abelhas, que não largam a flor em que pousaram, enquanto acham aí mel que ajuntar. Mas, se uma consideração causa dificuldades a tua mente e não tem atrativos para o teu coração, depois de ter-lhe aplicado por algum tempo o teu coração e a tua mente, podes passar adiante, a outra consideração, precavendo-te somente para que não te deixes levar por curiosidade ou precipitação.
Terceira Parte: Os afetos e as resoluções
Entretanto, Filotéia, não te deves restringir a estes afetos gerais, sem que faças resoluções especiais e particularizadas para o aperfeiçoamento de tuas ações. A primeira palavra de Nosso Senhor na cruz, por exemplo, produzirá em tua alma o desejo de imitá-Lo em perdoando e amando os inimigos; mas isto é muito pouco, se não fizeres a resolução seguinte: Pois bem, já não me ofenderei mais com tais palavras injuriosas da parte destas e daquelas pessoas, nem com o desprezo com que estes e aqueles me costumam tratar; pelo contrário, direi ou farei isto ou aquilo, para acalmar o gênio de um e atrair o coração de outro. Aí tens, Filotéia, o verdadeiro meio de corrigir depressa as tuas faltas, ao passo que só com afetos gerais o conseguirás com dificuldade, muito tarde e talvez nunca.
Quarta Parte: A Conclusão e o ramalhete espiritual
Afinal, deve-se terminar a meditação por três atos que requerem uma profunda humildade. O primeiro é agradecer a Deus por nos ter dado profundo conhecimento de Sua misericórdia ou de outra de Suas perfeições, assim como pelos santos afetos e propósitos que Sua graça incutiu em nós. O segundo consiste em oferecer à Sua divina majestade toda a glória que pode provir de Sua misericórdia ou duma de Suas perfeições, ofertando-lhe também todos os nossos afetos e resoluções, em união com as virtudes de Jesus Cristo, Seu Filho, e dos merecimentos de Sua morte. O terceiro deve ser uma oração humilde, pela qual pedimos a Deus a graça de participar dos merecimentos de Seu Filho, a essência de Suas virtudes, e principalmente a fidelidade a nossas resoluções, que só podemos conseguir com a graça divina. Reza ao mesmo tempo pela Igreja, pelos superiores eclesiásticos, por teus pais e amigos e outras pessoas, implorando a intercessão de Nossa Senhora, dos anjos e dos santos, e acaba recitando o Pater e Ave, que são as orações mais vulgares e necessárias aos fiéis. Quanto ao restante, ainda te lembras do que disse acerca do ramalhete espiritual da meditação; vou repetir quase em poucas palavras o que penso sobre isso: quem passeia pela manhã num ameno jardim não sai satisfeito sem colher algumas flores, pelo prazer de lhes sentir o perfume pelo dia adiante; assim também deves colher o fruto da tua meditação, gravando no pensamento duas ou três coisas que mais te impressionaram e comoveram, para as considerar de novo de vez em quando, durante o dia, e para te conservares em teus bons propósitos. Faze isso no mesmo lugar onde meditas, passeando um pouco ou dum outro modo, com sossego e atenção.
Avisos utilíssimos acerca da meditação
Cumpre, Filotéia, que no correr do dia tenhas tão presente no espírito e no coração as tuas resoluções, que, sobrevindo a ocasião, as ponhas efetivamente em prática. Este é o fruto da meditação, sem o qual ela, além de não servir para nada, pode ser até prejudicial. É certo que a meditação assídua sobre as virtudes, sem que as pratiquemos, ensoberbece o espírito e o coração e nos faz pensar insensivelmente que somos de fato aquilo que resolvemos ser. De certo que assim o seria, se nos propósitos tivéssemos força e solidez; mas, porque lhes faltam essas qualidades, permanecem vãos e, porque não produzem efeito algum, são até perigosos. Convém servir-se de todos os meios para os por em prática; deve-se mesmo ir em busca de ocasiões, tanto pequenas como grandes. Por exemplo: resolvi atrair pela brandura certas pessoas que costumam me ofender; hei de as procurar hoje, para as saudar com ares de estima e amizade; e, se não as posso achar, ao menos falarei bem delas e rezarei a Deus em sua intenção.
Mas, terminando a oração, cuida bem de evitar as agitações violentas, porque essas emoções lhe neutralizam o bálsamo celeste que recebeu na meditação: quero dizer que, se te for possível, permaneças algum tempo em silêncio e, conservando sempre os pensamentos e o gosto de teus afetos, vás passando assim suavemente da oração ao trabalho. Imagina um homem que recebeu num precioso vaso de porcelana um licor de grande valor, a fim de o levar para sua casa. Ei-lo caminhando passo a passo, sem olhar para trás nem para os lados, mas sempre para frente, com receio de por o pé em falso ou tropeçar numa pedra; e, se para algumas vezes, é só para ver se, com o movimento, não se derramou alguma parte do precioso licor. Faze também assim com a meditação; não te distraias e dissipes imediatamente, mas considera com uma atenção simples e tranquila o caminho que tens que andar. Se encontras alguém com quem deves falar, é preciso que te conformes a isso, mas toma sentido ao teu coração, para que nada se perca daquela suavidade preciosíssima de que o Espírito Santo o encheu na oração.
É necessário que te acostumes a passar da oração as outras ocupações de tua profissão, por mais contrárias que te pareçam aos sentimentos e resoluções da meditação. Assim, um advogado deve saber passar da meditação ao escritório, um negociante ao comércio, uma dona de casa aos cuidados do lar doméstico, com tanta suavidade e calma, que seu espírito em nada se perturbe; pois, querendo Deus igualmente uma e outra coisa, é necessário passar duma a outra com uma devoção inteiramente igual e com uma submissão completa a vontade de Deus.
Há de acontecer algumas vezes que, mal acabaste a preparação para a meditação, já tua alma se sente tão comovida que de repente se eleva a Deus. Então, Filotéia, abandona todo o método que até aqui te expus, porque, embora o exercício do entendimento deva preceder o da vontade, se o Espírito Santo opera em ti por estas santas impressões de tua vontade, não vás procurar excitar no espírito, pelas considerações da meditação, aqueles santos afetos que já possuis no coração. Enfim, é uma regra geral que se deve dar larga expansão aos afetos que nascem no coração e nunca os reprimir e deter cativos em tempo algum que se façam sentir, seja antes, seja depois das reflexões. A mesma regra hás de seguir a respeito daqueles outros atos de piedade que fazem parte da meditação, como a ação de graças, a oblação de si mesmo e a oração, uma vez que a conserves em seu lugar determinado no fim da meditação.
Quanto as resoluções, que se conformam aos afetos, naturalmente só devem ser tomadas depois dos afetos, ao terminar a meditação, porque, tendo que nos representar muitos objetos particulares e familiares, podia isso produzir distrações, se as ajuntássemos aos afetos.
Muito útil é, enfim, usar de alguns colóquios neste exercício da vontade, dirigindo-nos ora a Nosso Senhor, ora aos anjos e aos santos, máxime aqueles que tornam parte no mistério que se medita, a si mesmo, ao seu coração, aos pecadores e até as criaturas irracionais, como fez David nos salmos e outros santos em suas meditações e orações.
A aridez espiritual na meditação
Se acontecer que não aches prazer na meditação, nem sintas aí consolo algum para a tua alma, eu te conjuro, Filotéia, a não te perturbares com isso, mas procura remediar o mal com os alvitres seguintes: Recita algumas das orações vocais em que teu coração se compraz de preferência; queixa-te amorosamente a Jesus Cristo; chama-O em teu socorro; beija respeitosamente a Sua imagem, se a tens a mão, confessa-Lhe a tua indignidade; dize-Lhe com Jacob: De modo algum, Senhor, me afastarei, se não me abençoardes ou então como a mulher cananéia: Assim é, Senhor, mas também os cachorrinhos comem das migalhas que caem da mesa de seus donos.
As vezes podes tomar um livro e ler devotamente, até que teu espírito esteja mais concentrado e disposto. Excita o coração o mais vivamente possível, por algum ato exterior de devoção, prostrando-te por terra, cruzando os braços ao peito, conservando um crucifixo entre as mãos: tudo isso, naturalmente, só se estiveres sozinha.
Se, após tudo isso, a tua secura espiritual não se atenuar, ainda não desanimes, Filotéia, mas conserva-te sempre na presença de Deus com todo o respeito. Bem sabes quantos cortesãos há que cem vezes por ano vão a corte sem esperança alguma de falar com o príncipe, mas somente para serem vistos dele, lhe prestarem homenagem ou, como se costuma dizer, lhe fazerem corte.
Assim, Filotéia, entremos em oração com simplicidade, tendo unicamente em vista o nosso dever. Se a divina Majestade se dignar de nos falar por Suas inspirações ou de dar-nos a graça de Lhe falar, será certamente uma honra imensa e um prazer delicioso. Mas se nos recusa esta graça e nos deixa sozinhos, sem corresponder-nos, como se não nos visse de todo ou não estivéssemos em Sua presença, não saiamos logo dali; ao contrário, aí devemos permanecer com resignação, com profundo respeito e com o espírito tranquilo.
Mais cedo ou mais tarde a nossa paciência e perseverança nos fará achar graça diante de Seus olhos e, a primeira vez que voltarmos a Sua presença, Ele nos receberá com olhares favoráveis e falará conosco no santo comércio da meditação e em Suas consolações nos fará saborear a suavidade inefável do Seu espírito. Mas, mesmo que até isso nos falte, contentemo-nos, Filotéia, com a honra de estar a Seu lado, presentes aos olhos de Sua adorável majestade.